Ao
julgar incabível a medida de internação para menores, que não tiveram registros
policiais anteriores, envolvidos com a prática do ato infracional similar ao
tráfico de drogas, o Superior Tribunal de Justiça solidificou a sua
jurisprudência há muito consolidada, com a edição do verbete sumular 492: “O ato infracional análogo ao tráfico de
drogas, por si só, não conduz obrigatoriamente à imposição de medida
sócio-educativa de internação do adolescente”.
A
despeito de o entendimento da Corte da Cidadania seguir a exegese extraída da
letra fria da lei, percebe-se que não é a interpretação mais consentânea com a
realidade brasileira atual. E algumas reflexões sobre seu impacto na sociedade
hão de ser destacadas. Pensemos...
Problemas
existem. Isto é fato. Soluções, nem sempre as mais ortodoxas ou inovadoras são
capazes de soterrar de uma vez por todas o embate que pretendem resolver. Dentro
desta dogmática, não se pode olvidar que para determinadas controvérsias,
máxime quando se trate de interpretação da lei ou aplicação desta em um
contexto social heterogêneo e dinâmico, inexiste uma fórmula mágica que encaixe
como uma luva para a situação em se discute, até porque na mão pode faltar um
ou outro dedo, e por vezes pode sequer existir a mão que se pretendia cobrir. Entretanto,
não há como deixar de afirmar que a sociedade espera dos senhores magistrados é
a “prudência da justiça” nas decisões proferidas e a esperança que terão por escopo
principal a promoção da paz social que, aliás, trata de missão conferida a
todos os operadores do direito. Ao
meu sentir, a realidade social e o seu contexto histórico devem ser
considerados como fatores preponderantes para a análise da norma pelo exegeta e
alguns fatos devem ser repisados. Vejamos:
Como
é cediço, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/90) foi editado
quase 02 anos após a promulgação da Carta Magna de 1988, visando salvaguardar
aos interesses dos menores. Contudo, não há como deixar de se destacar que a
estrutura organizacional do tráfico de drogas naquela época (1990) ainda era
incipiente, bem diferente do contexto hodierno em que organizações criminosas,
como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho, ameaçam
diuturnamente e cada vez mais a paz, a saúde e a segurança públicas, máxime nos
grandes centros urbanos.
Não é de hoje que o
tráfico de drogas vem sendo denominado como um câncer do tipo maligno e
assolador, que se infiltra rapidamente por todo o corpo social, esfacelando
famílias, corrompendo trabalhadores de todas as esferas, além de ser um dos
grandes males da sociedade contemporânea, ao fomentar a violência urbana da
qual todos nós somos vítimas.E
diga-se mais:
O
comércio de drogas não se trata de uma relação estanque em que há apenas dois
sujeitos que envolve o mercador que aliena o entorpecente e o usuário que
compra, mas sim, há que se considerado toda sua teia criminosa. Neste ponto,
vale dizer: Sua estrutura vai desde a pessoa que compra pequena ou significativa
quantidade de droga, da outra que faz o refino, da que a distribui para os
pequenos traficantes a fim de que possa revendê-la, etc., tudo isso a revelar
ramificações de pequenas, médias e grandes organizações criminosas que assolam
o meio social. Com tudo isso, há que ser gizado ainda, que seus protagonistas
vão desde pessoas desprovidas de mínimas condições de existência digna até
agentes públicos de alto escalão e empresários dotados de grande influência no
meio social. E essa gama de categorias
envolvidas com tão nefesta prática o que mais é preocupante é a participação de
jovens nesse mundo tão cruel.
O
que tenho verificado na atuação prática de Promotor da Infância e Juventude é
que uma das ferramentas de que se valem os criminosos para o robustecimento da
máquina do tráfico são as crianças e os adolescentes que, sem a fiscalização de
seus pais ou responsáveis legais, viram alvos fáceis nas mãos dos criminosos.
Deste modo, uma vez cooptados, passam a ter relações estreitas com membros de
quadrilhas criminosas de alta periculosidade, sendo gradativamente iludidos sob
a falsa esperança de terem status social
e uma vida confortável, sem que precisem se preocupar em ter uma ocupação
lícita e honesta, o que se torna um forte chamariz para integração de mais e
mais menores ao submundo das drogas. E
essa lamentável constatação tem uma explicação muito simples:
Como
os inimputáveis recebem uma resposta estatal com medidas compatíveis com o
estado de pessoa em desenvolvimento, bem diferente dos elementos imputáveis
integrantes desta linha criminosa que se sujeitam a um tratamento bem mais
rigoroso, tratando-se de crime equiparado a hediondo, os barões do tráfico
buscam a todo momento a cooptação de menores para o fornecimento de mão de obra,
na condição das denominadas “mula” ou “aviãozinho”. E, quando os imaturos adolescentes
(quando não são crianças) são capturados e apreendidos, o desfalque na mão de
obra é facilmente substituído por outros menores, dada a grande rotatividade de
jovens dispostos a exercer o ofício
ilícito.
Caso
não bastasse a tamanha facilidade do traficante, é realidade constante em todos
os fóruns e tribunais do Brasil que, quando da ocorrência de apreensão em
flagrante, os menores de idade buscam a todo custo assumir toda a
responsabilidade da droga, confessando a mercância e todo seu “modus operandi”,
e, quando interrogados, isentam seus verdadeiros mentores de suas condutas.
Desta
maneira, partindo da premissa de que o processo penal necessita de provas
robustas e irrefutáveis para a condenação, sob pena de se cometer injustiças, a
imposição da responsabilidade penal aos imputáveis fica dificultada em
sobremaneira. E, ao final do processo infracional, mesmo sendo condenados,
dificilmente os adolescentes são submetidos a medida drástica da internação - por inúmeras razões, p. ex. falta de vagas, entendimento jurisprudencial,
conveniência da comarca, óbice legal, etc - , daí porque a participação de
menores na narcotraficância tem alcançado índices cada vez mais crescentes. Constatação
lamentável...
Em
virtude de todo esse perigoso contexto acaba por gerar uma grave crise
institucional, legal e de valores, na medida em que toda a sociedade começa a
se questionar se a legislação menorista atende aos anseios da coletividade que,
em que pese entender a necessidade de se educar os jovens de hoje para que não
se determinem à margem da lei amanhã, se choca e se rebela contra barbáries por
vezes levadas a efeito por quem sequer teve finalizado o seu desenvolvimento
físico e mental. Diante desta conjectura, a sociedade brasileira –
hodiernamente muito mais informada do que ocorre nos bastidores da justiça – acaba
por desacreditar na justiça, porquanto vivenciam a evolução da jurisprudência
cada vez mais benevolente e os crimes aumentando. Sensação de impunidade!
Por outro lado, convém enfatizar que o
adolescente de hoje, diferentemente daquele tratado no Estatuto dos Menores,
possui ampla participação social e detém acesso amplo e fácil à informação por
meio da internet e das redes sociais,
a ponto de se exigir uma responsabilidade social em todos os aspectos sociais
do cotidiano, especialmente no que tange à prática de condutas perniciosas. Logo,
face ao atual momento evolutivo que vivenciamos é forçoso afirmar que o
inimputável não deve ser tratado como parasita e inconsequente, ao revés, deve
ter o pleno conhecimento de que quaisquer atos perpetrados à margem da lei não
mais serão tolerados pelo Estado e, por conseguinte, serão tratados de forma
proporcional à gravidade de sua conduta.
Data
máxima vênia a orientação da Superior Corte de Justiça, tenho que seu efeito
prático só fará sobrelevar a sensação de impunidade e o fomento ao aliciamento
dos jovens pelos comandantes dos grupos criminosos, que se sentem cada vez mais
estimulados a corrompê-los sob a certeza de que logo depois de serem
apreendidos, estarão novamente à disposição para cometerem novos atos
infracionais.
Lamentavelmente,
a leitura do art.122 do Estatuto não é mais consentâneo com a realidade dos
jovens que compõem o submundo do tráfico, pois traz riscos à paz, à saúde, à
segurança, ao pregar o regime aberto, colocando em perigo toda a sociedade, já
que a traficância é a porta de entrada a outros delitos, como furto, roubo,
homicídio, latrocínio, dentre outros.
Se
a Constituição e a Lei de Drogas encaram com austeridade as pessoas envolvidas
com a mercancia ilícita de substâncias estupefacientes, é razoável aplicar aos
infratores o mesmo tratamento proporcional à condição de pessoa em
desenvolvimento, de forma a coibir apropriadamente atos nocivos que afrontam o
exercício da cidadania e ao bem estar social.
Ouso
a afirmar que, ao tolerar que inimputáveis possam praticar atos violadores da
ordem jurídica de tamanha gravidade com reprimendas irrisórias ou que imponha que
a autoridade judicial aplique medida que destoa da gravidade da conduta e da
personalidade do agente, inegavelmente, o Estado passa a oferecer uma proteção
deficiente a bens jurídicos que também merecem ser salvaguardados, como a paz,
a segurança e a saúde pública.
Em
casos tais, a liberdade do adolescente em detrimento do corpo social revela uma
indevida omissão estatal na proteção de bens jurídicos tuteláveis. Significará
dizer que, em termos práticos, o próprio adolescente,
diante da impunidade, não encontrará limite legal que impeça o seu agir ou,
ainda, que modifique sua ação, deixando-o cada vez mais entregue ao domínio do
narcotráfico e a sociedade em geral, desprotegida pela lei, não encontrará no
Estado a proteção esperada, e assistirá cada vez mais a desolada ação de
menores participando como coadjuvantes e protagonistas da disseminação do
consumo de substâncias psicotrópicas, de forma avassaladora, em escolas, lares
e praças, órgãos públicos e comércios, enfim, uma espécie de dominação em todo
o ambiente social.
Ao
meu juízo, o Estado, por meio do Poder Legislativo, deve exercer uma política
criminal que recrudesça as penalidades aplicáveis na legislação menorista,
tornando-a compatível e eficaz com a realidade dos adolescentes useiros e vezeiros
na prática de ato infracional similar ao tráfico de drogas. Procedendo de tal
forma, passará a tutelar mais eficazmente toda a sociedade, que já é carente de
políticas públicas eficazes relacionadas à cultura, educação, à oportunidade de
emprego, destinadas a esta parcela da população, evitando que fiquem ociosos e
se envolvam com atividades ilícitas.
Soma-se
a isso, diante do caso concreto, o Poder Judiciário, auxiliado pelos demais
órgãos da justiça, sobretudo o Ministério Público, deve dar uma resposta
proporcional e adequada àqueles jovens que ingressem no submundo do tráfico de
drogas. Assim agindo, com o passar dos tempos, a sociedade voltará a acreditar
na Justiça de Menores, enquanto que os jovens terão o pleno entendimento de que
a vetusta visão do Estatuto Menorista passa a ser adequado à nova realidade
social, uma vez que serão devidamente reprimidos por condutas que levam a uma
enorme cadeia de outros crimes, em ordem a evitar que a tolerância exacerbada
incentivadora de novas condutas infracionais.
Com
todo o respeito a opiniões divergentes, que respeito, o entendimento do corpo
social sobre o que seja certo ou errado, justo ou injusto, conceito variante de
acordo com a cultura, lugar e tempo de um povo, defende-se que a simples
verificação da norma em apreço e a sua compatibilidade com a Lei Maior não são
suficientes para se aferir pelo acerto da súmula em apreço. Todas essas
vertentes deverão ser abalizada. O tempo de vigência da súmula nos trará subsídios
para maiores reflexões.
LUIZ
EDUARDO SANT’ANNA PINHEIRO-