Tiririca, o palhaço, o humorista e também o deputado mais votado nas últimas eleições. Não me surpreendeu. O nosso sistema democrático é uma piada mesmo. Só faltava um autêntico palhaço para completar o circo. Nada contra o Tiririca. É só um pequeno exemplo - dos vários - que reforçam a minha frustração com a democracia brasileira. O nosso “governo do povo” é um engodo. E bota engodo nisso. A coisa toda parece que foi feita para não funcionar. E não estou falando aqui somente da deficiência moral do ser humano - que faz com que muitas idéias boas fracassem. Estou falando da idéia em si mesmo, do que está no papel. Os furos são muitos. É praticamente um queijo suíço. Quero analisar aqui o que considero apenas um dos furos, apenas uma das inúmeras falhas do nosso sistema democrático.
Quando contratamos alguém para cuidar da nossa casa ou empresa, primeiramente avaliamos qual é a pessoa mais bem qualificada para a tarefa. Após escolhida e contratada, se ainda assim ela não faz um bom trabalho, ou pior, nos rouba, demitimos e contratamos outra. Simples assim. Nada mais lógico, não? Só que para ser político, representar o povo e cuidar da nossa nação, não é necessário ter qualificação nenhuma, segundo reza a sabedoria da nossa Carta Maior. Basta ser alfabetizado, saber ler e escrever e, conforme jurisprudência da justiça eleitoral, mal e porcamente, diga-se de passagem. Ah! e o mais importante, ter muita grana para iludir (o demoníaco marketing que transforma todos em quase santos) e comprar os votos dos mais pobres e ignorantes. Então eu pergunto: se a nossa Pátria é a nossa maior riqueza, você entregaria a administração da sua riqueza (seus bens, seu patrimônio, seus filhos, seu dinheiro etc) para alguém que não julga qualificado para a tarefa? Perceberam a incoerência?
Mas há muitos que argumentam contrariamente ao que digo: - “Não seja tolo! A Constituição foi sábia! Não se poderia exigir um critério maior que a alfabetização, pois isso iria contra um dos pilares sobre os quais foi erguido o nosso Estado Democrático de Direito, onde o povo é representado pelo povo e todos tem o direito de votar e ser votado. E limitar o poder de escolha do povo é restringir este direito fundamental.” E acrescentam: - “O problema da política brasileira é a falta de caráter, a corrupção, e não a falta de qualificação dos políticos.”
Engraçado falar em limitação do direito de ser votado. A própria exigência de ser alfabetizado já não é uma limitação? Nessa linha de raciocínio, o analfabeto, que ainda representa uma boa parcela do povo e que não pode se candidatar, tem tolhido, então, o seu direito democrático de ser votado (votar ele pode), afinal um analfabeto poderia ser eleito para representar os demais analfabetos, certo? Veja como essa argumentação não se sustenta. Todo poder, cargo, habilidade ou profissão demanda um certo preparo técnico, não é limitação. Para alguém ter o direito de dirigir tem que fazer autoescola e comprovar sua habilidade em exame posterior, para ser médico tem que fazer faculdade e posterior exame, para ser advogado também, e por aí vai. Ninguém está sendo impedido no direito de dirigir, de clinicar ou de advogar.
Não é incoerente que um deputado que irá fazer leis que regem a sociedade e fiscalizar o governo mantido também pela sociedade só precise ser alfabetizado, enquanto é exigido desta mesma sociedade formação, qualificação, conhecimento e preparo contínuos para realizar qualquer tarefa, exercer qualquer simples profissão (concurso de gari exige nível médio por exemplo)? Compreendo que não é uma garantia absoluta, que a pessoa pode ter qualificação e não fazer nada, roubar e etc, mas aí será questão de caráter e não de incompetência. Óbvio que o caráter é fundamental, mas infelizmente este requisito não pode ser medido por critérios objetivos, diferentemente do preparo, da qualificação técnica. Muitos não imaginam o desperdício que há de dinheiro público, não por corrupção ou maldade, mas por puro amadorismo mesmo. Já vi vários casos de má administração pública gerando prejuízos e sabe o que acontece? Nada! Não vou aprofundar o assunto aqui mas basicamente como não houve má-fé, dolo e enriquecimento ilícito, a própria lei e jurisprudência protege o gestor público nesses casos. Ou seja, a lei o protege dele mesmo! E o dinheiro foi para o ralo, nem para o bolso do infeliz foi!
E quanto aos legisladores, vejam as leis que são feitas nesse país! Já vi muita gente inteligente ficar repetindo o clichêzinho de que as nossas leis já são muito boas, o único problema é que não são aplicadas. Boas?? Muitas delas são um desastre! Um professor da faculdade dizia acertadamente que no Brasil há uma diarréia legislativa! Exemplos não faltam. Legislação tributária uma desgraça completa; leis processuais que alimentam a morosidade, a burocracia e a impunidade - processo penal só é bom para o advogado do bandido; a própria Constituição, tão aplaudida e reverenciada, mas com inúmeras contradições; e por aí vai, uma diarréia sem fim! Mas resumindo, esta é a dupla chaga do governo brasileiro: corrupção e incompetência! Se houvessem pessoas mais bem preparadas, pelo menos se eliminaria uma das chagas. Não se trata de limitar direitos, muito pelo contrário. Exigir qualificação é ser a favor da meritocracia.
Um outro argumento contrário ao que estou propondo é dizer assim: - “Existem pessoas que não tiveram nenhuma preparação técnica, nunca estudaram, nunca se formaram, mas na hora de trabalhar se revelam competentíssimas em suas áreas! Outras, possuem excelente instrução, mas na prática, no exercício da atividade, acabam se demonstrando incompetentes. Por isto, a exigência ou não de um nível técnico melhor para os candidatos não irá refletir necessariamente uma melhor atuação política.
Essa é boa! De fato, há algumas pessoas que não foram preparadas ou instruídas, que não fizeram escola, cursos, faculdade, e que, extraordinariamente, são competentíssimas em suas áreas. Mas convenhamos, são exceções! E a regra geral não pode se pautar pela exceção (ou não deveria). Por isso devem ser exigidos critérios objetivos, do mesmo modo que alguém pode saber muito de direito (um rábula) ou de medicina, mas não poderá ser efetivamente médico ou advogado se não preencher os pré-requisitos que a lei exige - ensino superior, exame da OAB, etc. Não é estranho que se exija tanto deles e nada dos cargos políticos, cujas atribuições influirão decisivamente na vida dos mesmos médicos, advogados e demais cidadão? Querer justificar dizendo que há pessoas que nunca tiveram formação nenhuma, mas se revelam brilhantes com a “mão na massa”, e outras que, mesmo com muito estudo e preparação adequada, são um fiasco, ah francamente, não cola. Insisto: é querer pautar a regra pela exceção. É o mesmo que dizer: – Pessoal o Silvio Santos nunca estudou, era camelô e ficou muito rico! Tirem seu filhos da escola, eles não precisam disso!
O que me deixa abismado é que deveríamos estar escolhendo os melhores dentre os melhores para nos representar, e não esses tiriricas da vida (com todo o respeito ao Tiririca como pessoa, palhaço e humorista). Mas ainda assim tem gente que argumenta: - “O povo é que deve fazer este filtro na avaliação do mais preparado. Cabe ao povo a escolha. Isto é a democracia: o povo vota e escolhe aquele que julga ser o melhor para representá-lo.”
Este sim é um típico argumento de quem estuda muitas belas teorias, mas ignora a realidade dos fatos. Um cidadão consciente, que tem um bom emprego, uma boa estrutura familiar, uma boa educação e formação, quando vai votar - pode ser - que faça esta ponderação. Pensa no coletivo, avalia o mais preparado, o que mais confia, as melhores propostas etc. O problema é que a maioria não vota desta maneira. Justamente pelos fatores opostos: má educação, cultura, miséria, etc. A grande maioria troca o voto por cesta básica, por promessas de emprego, por favores em geral. E não adianta simplesmente condenar os que fazem isso, porque muito provavelmente se estivéssemos na mesma situação social, cultural e intelectual faríamos o mesmo. Esse papo de simplesmente deixar à mercê do povo a escolha dos melhores representantes é muito bonito na teoria, mas na prática não funciona. Numa sociedade mais avançada talvez funcione. Veja um exemplo bem fresco: a lei da ficha limpa. Ela é antidemocrática então?? Sim, porque pela democracia plena, sem restrições, sem exigências, sem limitações ao direito de votar, totalmente livre, o povo é quem filtra pelo voto, então se o povo escolher um bandido já condenado pela justiça, o povo julgou que, apesar disso, ele seria o melhor representante, certo?!? A vontade do povo quis assim e a democracia foi plenamente satisfeita, é isso?!? Percebam, numa sociedade mais avançada nem estaríamos discutindo lei de ficha limpa porque o próprio povo iria expulsar os bandidos pelo voto. Como sabemos, não é essa a realidade do povo brasileiro.
Vejamos mais um argumento contrário ao que estou esmiuçando aqui: - “No Brasil, hoje, ainda é a minoria da população que possui alta qualificação, nível superior por exemplo. A exigência desse requisito acabaria por limitar, portanto, a elegibilidade apenas à minoria da população. Ora, se o poder emana do povo, não pode exercê-lo uma pessoa que não representa a sua (o povo) realidade. O Congresso deve ser o microcosmo da sociedade brasileira. E mais: - Os políticos não precisam ter nenhum tipo de formação, já que contam com uma equipe de assessores e profissionais qualificados para ajudá-los. Portanto, não é necessário conhecimento técnico para ser político.”
Interessante. Povo representado pelo povo. Concordo. E, como já disse, este povo deve ser representado pelos seus melhores integrantes – e acho que todos concordam com isso. Então porque o sujeito ralou, batalhou, se instruiu, estudou e se preparou para ascender profissionalmente, intelectualmente, enfim, para se tornar uma pessoa cada vez melhor, ele não é mais da “categoria” povo? (já escrevi um texto neste blog sobre esta inversão de valores que muitos pseudo-intelectuais socialistas gostam de fazer, veja o link: http://precisamosquestionar.blogspot.com/2010_11_01_archive.html ) Sob outro ponto de vista, vejamos numa empresa, quando se vai votar para quem vai comandá-la. Normalmente a votação já se dá dentre os mais bem preparados para o cargo, ou seja, não há possibilidade de que o estagiário da empresa seja o escolhido, na verdade, ele nem está dentre os candidatos. Contudo, este estagiário pode ir estudando, trabalhando, crescendo na empresa, galgando os diversos setores, até que esteja com todos os requisitos para se tornar o chefe. Percebam, ele não está terminantemente excluído de uma oportunidade de assumir o comando da empresa, ele pode se preparar e chegar lá! E não é isso o que acontece frequentemente em muitas empresas? A diretoria destas empresas, compostas de pessoas que começaram em baixos cargos e foram ascendendo em diversos setores, não representa o “microcosmo” da empresa?! É coerente entregar o comando da empresa ao estagiário? Eu sei que a comparação não é exata, porque empresa é diferente de Estado, um é privado, outro público, um persegue o lucro e o outro não e blá blá blá! Mas, carambolas, uma cidade, por exemplo, não é até muito mais complexa que uma empresa, com obras a executar, postos de saúde a gerenciar, escolas a melhorar, etc? Para exercer o papel de prefeito de forma competente e eficiente não seria necessário um conhecimento técnico mínimo sobre administração, contabilidade, legislação, etc? Não há conhecimentos específicos em relação a administração de uma cidade que um prefeito deveria saber? Isso sem falar na questão da maturidade e experiência que um cargo político deveria exigir. Para ser vereador a idade mínima prevista na Constituição Federal é de 18 anos, Prefeito, 21 anos! Um absurdo na minha humilde opinião. Mas nem vou adentrar nesse mérito agora, fica o tema para um outro questionamento.
Sobre ser exigido nível superior para se candidatar, entendo que é discutível. Não disse que deveria ser necessariamente esse o requisito. Não é isto que estou colocando aqui. O que questiono é não se exigir NENHUMA formação, conhecimento, experiência, NADA! Poderia ser colocado, por exemplo, alguma experiência comprovada em administração, como critério para se candidatar ao executivo. No caso do legislativo, poderia ser realizado um curso específico e o candidato faria um exame no TRE sobre confecção de leis, noções de direito, etc. Não sei ao certo, mas qualquer coisa seria melhor do que simplesmente o cara ler "vô-vô vi-u a u-va da vó-vó" não é? Quem administra um hospital, por exemplo, nem sempre é médico, mas tem um baita conhecimento em como administrar um hospital, fruto de muito estudo e trabalho com certeza. E essa de se cercar de assessores e profissionais, de contratar todo mundo, é uma boa saída claro! Quer dizer, o chefe mesmo não sabe nada e tudo o que faz é assinar embaixo aquilo que os outros fazem. É como funciona nos ministérios do governo. Por exemplo (isso nem acontece no Brasil), indicação política de um ministro dos transportes que não tem qualificação nenhuma em transportes. Mas tudo bem, os assessores deles saberão o que fazer, certo?!
Maravilha. Então vamos também eleger juízes, promotores, delegados, por votação popular, bastando que sejam alfabetizados. Eles não saberão das leis, dos trabalhos que terão de desempenhar, mas se cercarão de assessores qualificados para isso. O Judiciário também não é um dos três poderes? O poder não é do povo? Então democracia nele também! Olha que ótima ideia.
Ao discutir sobre o tema com meus colegas me alertaram também sobre um "cursinho" de legislação para parlamentares eleitos (veja o link: http://oglobo.globo.com/politica/deputados-federais-novatos-tem-cursinho-para-aprender-sobre-funcionamento-da-camara-2839847 ) Fala sério!? Pelo que eu li é mais uma piada. Primeiro, que não é obrigatório, segundo, pelo que entendi, é uma espécie de "intensivão", tipo um produto daqueles comerciais, fiquei imaginando: - “Adquira agora mesmo o seu curso e vire um legislador alto nível em poucas horas! É fácil, prático e rápido! Confira o depoimento do Deputado Tiririca: É isso aí abestado!! Agora eu sei fazê as lei! Ô mininu lindu!” E outra, a lógica não é a de se preparar antes para aquilo que se almeja, o cargo pretendido? Você entra no cargo de médico e estuda para medicina depois?
Mas, concluindo a ideia inicial, eu sei que o fato de indivíduo ser preparadíssimo não é garantia de que ele será um bom governante ou legislador. Mas o que pode também um sujeito bom e honesto sem preparo, competência? O que pode um cordeiro num covil de lobos? Dizer que alguém tem que estar preparado minimamente para o cargo que pretende exercer soa tão absurdo assim quando se trata de cargos políticos? Não estou afirmando aqui que ter pessoas mais bem qualificadas no poder seria a salvação da lavoura, uma revolução e o país iria se tornar melhor por conta disso. Talvez tudo continuasse na mesma, já que o grande cerne dos problemas da humanidade é a questão moral. O que questiono é a inversão de valores, a falta de lógica, de bom senso, de razão, e a INCOERÊNCIA de que para ser um funcionário qualquer você precisa ser preparadíssimo, estudar e trabalhar muito, e para ser representante máximo de um poder estatal você pode ser um... tiririca!
Como se não bastasse tamanha incoerência, há ainda o fato de que não temos meios de “demitir” o político escolhido. Temos que aturá-lo lá por 4 longos anos. É como passar um cheque em branco, uma procuração irrevogável com amplos poderes. Nesse ponto a nossa querida Constituição acertou em cheio ao dizer: "O poder emana do povo..." De fato, emana, e uma vez emanado não volta nunca mais. Mas ainda nos resta algum poder - o poder de estudar, de trabalhar, de questionar, de reclamar, de espernear, de protestar, de formar e educar bem os nossos filhos, de participar de algum trabalho social, de ser cidadão efetivo (não apenas votar e já achar que fez seu papel) enfim, de contribuir de alguma forma para a construção de um mundo melhor. A coisa é difícil, mas essa é a idéia, não adianta esperar por políticos messiânicos, “o sistema” (como diria o herói brasileiro Capitão Nascimento) ainda é voltado para o mal. Eu disse - ainda - pois as coisas podem - e vão - mudar, em breve espero. Já estão mudando, dizem os mais otimistas. Pode ser. Mas a mudança real começa em nós mesmo, de dentro para fora. Mudar o mundo é mudar nosso mundo interior - esse é o verdadeiro poder - e que está ao nosso alcance.
Este link também traz ideias interessantes sobre o tema: http://www.kanitz.com/veja/democracia_negativa.asp
Por Rodolpho Barreto Pereira, com a colaboração de Igor Loureiro e Fabiano Miranda.